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Transição de carreira: da música para a tecnologia

Escrito por Marcos Carvalho, Software Engineer na Pipefy. 

Diante do cenário de crescente demanda por pessoas desenvolvedoras no mundo inteiro, há uma grande movimentação de profissionais ingressando na tecnologia. Muitas destas pessoas estão iniciando no mercado de trabalho agora, mas outras dedicaram seus esforços em direção a outras carreiras e agora estão questionando se não seria um momento de fazer mudanças e buscar uma transição, visto que as oportunidades são inúmeras e o mercado de tecnologia está cada vez mais inclusivo e diverso. Eu fui um destes profissionais que optou pela transição. A ideia deste artigo é contar um pouco sobre esse processo de transição e compartilhar algumas estratégias que utilizei para mitigar a aparente falta de relação entre as áreas de tecnologia e música.

Estudei nos cursos de Licenciatura em Música da PUC-PR e também no curso de Bacharelado em Música com foco em performance de Contrabaixo Acústico pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná – UNESPAR. Atuei por 7 anos como músico profissional, onde tive a oportunidade de tocar na Orquestra Sinfônica do Paraná, Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná e na Orquestra Sinfônica da cidade de Ponta Grossa. Além disso, participei de diversos eventos, festivais, oficinas e concursos de música. Quem quiser conferir, há esta gravação do IWCQ, que é um evento internacional do jogo League of Legends, onde toquei juntamente com uma orquestra fantástica. 

Por que mudar? 

Ao se discutir transição de carreira, uma pergunta sempre vem à mente: por que mudar? E esta é uma pergunta importante, pois temos que avaliar motivações pessoais, ao mesmo tempo que observamos um movimento macro, como a realidade política, social e econômica que estamos inseridos e como isso nos impacta. A minha decisão foi tomada depois de algum tempo de reflexão da minha realidade pessoal. A percepção do macro foi vindo depois e quero abordar isso um pouco mais adiante neste texto. 

Iniciando na tecnologia

Há uma concepção errada de que há uma falta de relação entre música e tecnologia, e foi com essa mentalidade também que entrei na programação. Mas aos poucos fui desconstruindo esta crença com a seguinte estratégia: encontrar paralelos entre as áreas. É possível identificar relações e paralelos entre diversas áreas do conhecimento e certamente a música e a tecnologia têm diversas coisas em comum.

Em meus estudos de educação musical, durante meu curso de licenciatura, tive contato com diversas pessoas que pensaram sobre a pedagogia e aprendizado musical. Dentre elas destaco David Ausubel e Paulo Freire, que trouxeram o conceito da aprendizagem significativa, que tem o objetivo de abordar um novo conhecimento, relacionando com um conhecimento prévio do aluno, trazendo não só uma relação cognitiva, mas também afetiva, e fazendo que o processo de aprendizagem seja mais efetivo.  

Assim que concluí que poderia usar essa abordagem à meu favor, comecei a enxergar que várias tecnologias, linguagens, bibliotecas, pessoas programadoras faziam referências à música em seu trabalho com programação (você pode conferir essas referências ao final do artigo).

Tecnologia e Música

Ao longo do processo de transição, as relações entre as áreas começaram a ficar cada vez mais claras. Fui coletando alguns destes aprendizados e quero compartilhar, com a intenção de ajudar quem estiver interessado em fazer uma transição de carreira. 

Aprendizagem

Tanto a música quanto a tecnologia estão sempre em constante mudança. Temos que sempre aprender coisas novas onde vemos constantemente a ideia de lifelong learners, ou seja, aprendizes para a vida toda. Há sempre uma nova linguagem, padrão ou tecnologia para aprendermos na tecnologia, assim como na música, temos que aprender novos estilos, obras e músicas. Em ambas as áreas, uma otimização do processo de aprendizagem é extremamente necessário. Temos que aprender a aprender. 

Alguns pensadores acreditam que na realidade atual do mundo do trabalho, a curva de esquecimento talvez seja tão importante quanto (ou mais) que a curva de aprendizagem, onde temos que estar constantemente nos atualizando e deixando de utilizar métodos e conhecimentos depreciados, que já não tem mais tanta relevância. 

Prática

Ambas as profissões de musicista ou pessoa programadora, são profissões de prática: quanto mais se pratica, melhor você se torna. Mas aqui deixo um ponto de atenção: não é quanto se pratica em termos de quantidade, mas sim de qualidade. Muitos de nós temos uma ideia romantizada sobre estas profissões, quando pensamos numa pessoa desenvolvedora que passa horas e horas programando, virando noites para se tornar uma super hacker; ou até mesmo a musicista que toca 12 horas por dia para participar de um concurso ou fazer um recital importante, ou até mesmo a pessoa compositora que teve uma grande inspiração para um obra de arte e passa dias e noites à fio compondo. 

Infelizmente esse estereótipo ainda é alimentado de diversas maneiras e temos que buscar desconstruir esse mito. Por que? Porque eu aprendi isso da pior maneira: quando estudava contrabaixo acústico, que é um instrumento muito exigente fisicamente, comecei a sentir, um dia, algumas dores no braço esquerdo e não sabia do que se tratava, até que fiz uma consulta médica e descobri que estava começando a ter problemas no pulso, muito parecido com o problema que jogadores de tênis tem. Quando levei isso para minha professora, na hora ela disse: você está praticando demais e de forma incorreta. 

O aprendizado que trago disso para programação é que a prática deve ser sustentável, respeitando seus limites, aceitando os erros e aprendendo com eles. A busca por essa sustentabilidade, na prática, também traz um grande benefício: consistência. Descobertas recentes na neurociência provaram o que pensadores, cientistas e pedagogas já indicavam: a consistência é mais importante do que a intensidade. Então praticar todos os dias, de maneira otimizada e atenta, é muito mais eficiente.

Colaboração

A colaboração é importante para qualquer time em qualquer área da atuação. Mas meu trabalho na programação foi fortemente influenciado pela maneira como uma orquestra ou um grupo de jazz toca. Nestes grupos, a atenção, foco e a colaboração são essenciais para um concerto ou apresentação exitosa. Nenhum membro do grupo é mais importante, se um músico erra, o grupo erra. Vemos então que o coletivo é mais importante do que o indivíduo. E a colaboração também está intimamente ligada ao ponto anterior, que é a prática, onde precisamos estar treinados e com os estudos em dia para que possamos progredir enquanto coletividade, e contribuir de forma construtiva para atingir os objetivos do time. 

Linguagens

A palavra linguagem é muito presente quando estudamos música e programação. E aí cabe um bom estudo do porque ela está presente em ambas as áreas. Basicamente elas são sistemas estruturados de comunicação, que contém sintaxe, morfologia, semântica e figuras de linguagem. Quando iniciei na programação, este ponto me ajudou muito a aproximar o entendimento de código de programação. A abstração trazida pelas linguagens de programação é muito próxima da estrutura de uma partitura musical. Quando abordei desta maneira, ficou muito mais fácil de traduzir se um determinado símbolo teria algum determinado significado e ação dentro de um software. 

Criatividade

Aqui um ponto importante que trago da arte para a computação. Temos uma tendência a achar que programação é muito hard skill, algo muito puramente matemático e pragmático. Mas lendo mais sobre a história da computação, muitos grandes teóricos da área mostram a influência das artes e a importância da criatividade para sermos bons programadores.

Paul Graham, criador da linguagem de programação LISP e um dos fundadores da YCombinator, afirma em seu livro Hackers and Makers: “Pessoas programadoras são criadoras e não cientistas, o lugar certo para procurar metáforas não é nas ciências, mas entre outros tipos de criadoras”.

Assim como o grande Donald Knuth, autor de um dos mais importantes livros sobre programação, o The Art of Computer Programming, explica porque o nome do livro usa a palavra arte: “A programação de computadores deixou o campo das Artes para se tornar Ciência por um simples motivo: passamos a chamá-la de Ciência da Computação”.

Padrões

Música e programação são formados por padrões e isso é uma das características que permitem a sua manipulação através de métodos de linguagem. Podemos observar nestas duas áreas diferentes tipos padrões: codificação/escrita, estrutura e estilo. O aprendizado que eu trouxe para a programação foi que, para nos tornarmos melhores programadores, temos que nos expor ao código de outras pessoas. Conhecer como estas pessoas programam, qual o estilo e escolhas de sintaxe e organização de código nos torna melhores programadores também. Na faculdade de música, estudamos muita harmonia e estética musical, que busca entender o estilo de diferentes épocas e compositores. Uma vez que conseguimos distinguir os estilos musicais, podemos trabalhar com eles e emular estes estilos. 

O mesmo vale para a programação: estudar padrões arquiteturais, design patterns, organização de código e uso idiomático das linguagens que outras pessoas utilizaram ou documentaram, nos torna melhores profissionais. Igor Stravinski disse: “Grandes compositoras não imitam, elas roubam”. A ideia por trás disso é que podemos nos inspirar, estudar e aprender muito e ver como outras pessoas programam e ferramentas, como StackOverflow e GitHub, são ótimos lugares para praticarmos.

Transição de carreira

Estes foram alguns dos aprendizados que coletei na minha trajetória. Isso me ajudou muito a aproximar as áreas e tornar esse processo mais fácil. Segundo um levantamento de uma consultoria de RH, 53% dos brasileiros desejam mudar sua área de atuação, onde o setor de tecnologia é um dos mais almejados por estes profissionais. O que me leva a concluir que não foi apenas uma decisão pessoal minha nessa transição. O mundo do trabalho atual é dinâmico e falar em transição de carreira talvez não expresse bem o que o futuro do trabalho indica… Essa será uma realidade em todas as carreiras.

Uma transição de carreira pode ser desafiadora, mas nós podemos aceitar e acolher estes desafios e criarmos estratégias para termos o melhor aproveitamento possível deste movimento, levando em consideração toda a nossa experiência. 

Referências 

Aplicando a aprendizagem significativa na minha transição para a tecnologia, essas foram algumas referências que encontrei, que aproximaram a programação do meu universo musical: 

Composer – Gerenciador de dependências para a linguagem PHP. 

Sinatra – framework Ruby, tem seu nome inspirado no cantor Frank Sinatra.

Symfony – framework PHP.

Django – framework Python, tem seu nome baseado no guitarrista de jazz Django Reinhardt. 

Orquestração de containers, inspirado na ideia da condução de uma orquestra que o maestro ou maestrina exerce. 

Sonic Pi  é uma ferramenta de criação e performance musical baseada na linguagem Ruby. 

Rich Hickey, criador da linguagem Clojure. Tem formação em composição musical, trabalha também como compositor e guitarrista. Quem quiser conferir, há essa palestra muito legal que ele apresentou sobre design, composição e performance, trazendo também referências da música para a programação.

Adrian Holovaty, um dos criadores do framework Django. É músico e guitarrista de jazz. Você pode conferir alguns vídeos dele no seu canal oficial do YouTube. 

Chad Fowler, desenvolvedor, palestrante e autor do livro “The Passionate Programmer”. Constantemente aborda relações entre música e programação em suas palestras. Você pode conferir uma delas aqui

Why the lucky stiff, desenvolvedor, hacker e figura icônica da comunidade Ruby. Criador do clássico guia de aprendizagem Ruby “Why’s (Poignant) Guide to Ruby”, que pode ser conferido aqui. Para este guia ele produziu também uma trilha sonora sensacional, onde na faixa “The Parts of Ruby” ele afirma: “entenda que um programa são só palavras” (do original em inglês: “get through your head that a program is just words”).

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