O espaço da Neurodiversidade na área de Tecnologia

Mesmo em 2022, ainda há muito a ser estudado e revelado sobre a neurodiversidade. O termo, calcado em 1998 pela socióloga Judy Singer, se refere às variações naturais no cérebro humano de cada indivíduo em relação à sociabilidade, aprendizagem, atenção, humor e outras funções cognitivas. Ou seja, a neurodiversidade defende que as variações cognitivas e neurológicas são naturais, e não necessariamente patologias ou transtornos. O termo é usado para combater o estigma que pessoas neurodiversas tanto enfrentam durante a vida, e aqui a gente gostaria de falar especificamente sobre a neurodiversidade no trabalho, com foco na área de tecnologia. 

A Neurodiversidade defende ainda que as variações neurológicas humanas, como o Autismo e o TDAH, por exemplo, têm tanto pontos “positivos” como “negativos”. Ou seja, por mais que as condições neurológicas possam ser limitantes ou difíceis de lidar, elas também abrem novas portas, como traços de genialidade, facilidade em solução de problemas, memória aguçada, hiperfoco e várias outras características interessantes. Coisas que um empregador, por exemplo, adoraria escutar em uma entrevista de emprego, se a neurodiversidade for realmente bem aceita no ambiente de trabalho. 

Um dos mercados que mais parece atrair – e se beneficiar de – profissionais neurodiversos é o de Tecnologia. “Talvez por ser uma área de uma certa complexidade, que instiga o desafio, que instiga a solução criativa de problemas, atrai tanto pessoas que não cabem em moldes intelectuais comuns.” – Isso é o que responde Marina Ciavatta, CEO da Hekate Inc. Já Isabelle Salemme, DevRel Coordinator da Pipefy, diz que vê em tech uma área que demanda simultaneamente sua criatividade e pensamento racional/analítico, constantemente desafiando suas habilidades e a motivando a dar passos mais largos, desafiando medos e inseguranças. “Acredito que a área de tecnologia, principalmente a parte de desenvolvimento de software, é bastante interessante para pessoas neurodiversas, fato que é confirmado justamente pela quantidade de pessoas diversas trabalhando no setor”, completa Isabelle. Ambas compartilham que são diagnosticadas com o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). 

Atualmente, programas de diversidade e inclusão tem sido cada vez mais reforçados em empresas no mundo todo, especialmente na área de Tecnologia, uma vez que as pessoas neurodiversas têm sido vistas como diferenciais competitivos, justamente pela forma como abordam problemas de pontos de vista inusitados. “99 pessoas neurologicamente idênticas não conseguem resolver um problema, muitas vezes é o indivíduo 1% diferente que detém a chave” – É o que diz o pesquisador John Elder Robinson, defensor da neurodiversidade. Mesmo que as variações neurológicas possam resultar em déficits, desvantagens ou por vezes incapacitar os neurodiversos, ainda assim não significa que sejam pessoas disfuncionais ou menos valiosas.

A neurodiversidade tem sim os seus desafios, particulares à cada condição. “Sou vista como uma pessoa extremamente organizada, mas este é um esforço 100% consciente e necessário para que eu consiga trabalhar com outras pessoas. Minha memória é péssima e eu estou constantemente fazendo anotações para evitar me esquecer de informações importantes, porém eventualmente revisito gravações de reuniões para assegurar que não esqueci nenhum ponto importante abordado” – compartilha Isabelle. “Eu tenho muitas particularidades e preciso me adaptar aos processos corporativos, por isso eu preciso me esforçar para ser clara e comunicativa sobre como eu funciono e sobre como as pessoas esperam que eu funcione. Estou falando de um esforço de mais de 10 anos, um exercício realmente diário, que faço com acompanhamento de um profissional da área da saúde mental” – completa Marina.

Mas para as duas, um dos maiores desafios não é especificamente relacionado ao TDAH, e sim com o preconceito, estigma e desconhecimento ao redor das pessoas que são neurodiversas. Isabelle diz que, infelizmente, já passou por maus bocados no trabalho: “já cruzei com pessoas que me acusaram de usar o TDAH como desculpa por ter esquecido de algo, que disseram que era minha responsabilidade me adaptar ao ambiente e não vice-versa, que me ridicularizaram por uma ou outra limitação. Acho que isso é geral do mercado, não só de tech, e afeta todas as pessoas que divergem do visto como “normal”. É uma questão de falta de informação, respeito e empatia com pessoas que funcionam de forma diferente”. Já Marina diz que precisa constantemente adaptar seu aprendizado e ações, lembrando o tempo todo às outras pessoas que é diferente e possui seu próprio ritmo e processo. “Isso não significa que as coisas serão mal-feitas, só que serão feitas de uma forma diferente. Muita gente custa a entender isso, pois estão acostumadas com um molde que não cabe na neurodiversidade”.

Mesmo com o estigma e dificuldades que enfrentam na área, ainda assim as pessoas neurodiversas conquistam cada vez mais espaço em Tecnologia e no mercado de trabalho como um todo, seja por já estarem inseridas – mesmo sem divulgarem seus diagnósticos, ou seja por programas de inclusão e diversidade, que incentivam sua carreira. Felizmente, as empresas têm se mostrado cada vez mais abertas e adaptativas para a neurodiversidade. “Criar tecnologia, criar coisas novas, isso vem com a liberdade de criar o seu próprio ambiente. Eu trabalho com pessoas com TDAH, autismo, ansiedade, depressão, complexos sociais e muito mais, e são pessoas extraordinárias, com capacidades técnicas que me surpreendem todo dia e me fascinam. Não há um dia tedioso ao se trabalhar com tech, muito graças à neurodiversidade das pessoas que trabalham nessa área” – conta Marina.

E para quem ainda enfrenta desafios e precisa de um pouco de perspectiva sobre o mercado de Tecnologia e o espaço da neurodiversidade nele, Isabelle aconselha, principalmente, a não desistir: “meu recado é que ser diverso, diferente, divergente é uma dádiva, não um defeito. A liberdade de trabalhar da melhor forma para utilizar todo o nosso potencial não é um diferencial, é um dever das empresas, e é algo que podemos e devemos exigir. ‘Normal’ é um termo extremamente excludente e supervalorizado. Assim como não há duas pessoas exatamente idênticas no mundo, não existe uma receita mágica para assegurar a produtividade no trabalho – porém testar técnicas já existentes e desenvolvidas por outras pessoas é o primeiro passo para criar a técnica que te permita ser o/a melhor profissional que você pode ser. Encontre outras pessoas neurodivergentes, converse, e principalmente, seja sempre gentil consigo mesmo/a. O mundo nem sempre é um local acolhedor para pessoas que divergem, mas sempre haverão pessoas dispostas a desafiar o status quo para que todos e todas façam parte. Não se contente com um ambiente de trabalho tóxico e desrespeitoso, lute pelo seu direito de inclusão. Já trabalhei na Disney, na indústria hoteleira, com importação e exportação, em um instituto de pesquisa, em um banco e finalmente na Pipefy, onde estou a pouco mais de 7 anos, e muito feliz por trabalhar com pessoas super compreensivas e que de forma alguma vêm minha neurodiversidade como uma limitação, pelo contrário, valorizam as formas que eu encontro para lidar com as limitações e se esforçam para adaptar, quando necessário, as estruturas para que eu me sinta inclusa“.

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